Museu no interior de Goiás guarda relíquias da poetisa Cora Coralina

Por Eduardo Vessoni, do site Viagem em Pauta

A qualquer momento, parece que aquela mulher de estatura frágil e palavras marcantes vai irromper por uma das portas daquele casarão, às margens do rio Vermelho.

Cora Coralina ainda está viva por ali e segue debruçada na janela da Casa Velha da Ponte, observando a movimentação quase inerte da Cidade de Goiás, a 140 km de Goiânia.

Os imensos tachos de cobre repousam como se a última leva de doces acabassem de ser cortados; a velha poltrona de couro marrom continua encostada na parede; os vestidos floridos seguem pendurados no quarto; e seus poemas se exibem nas paredes.

Esse destino histórico é endereço do Museu Casa de Cora Coralina, um espaço de 3 mil m², incluindo o quintal dos fundos onde Cora plantava as frutas usadas em seus famosos doces cristalizados. Na área construída de 300 metros, onde a poetisa tardia nasceu e morreu, um acervo com dez mil documentos arquivados, entre cartas e originais de fotos dividem espaço com móveis originais da época que podem ser vistos em 12 ambientes da casa.

Uma das peças mais emocionantes em exposição é a carta original que o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade enviou a Cora, em 1979, cujos óculos pretos arredondados repousam sobre o papel branco em que o cronista de Itabira escrevera “Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã de Goiás. Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina”.

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Carta do poeta Carlos Drummond de Andrade a Cora Coralina[/img]

Construída no século 18 para abrigar os “recebedores do Quinto Real”, a antiga residência da poetisa foi adquirida pelo trisavô de Cora, o sargento-mor João José do Couto Guimarães, em 1825. E nunca mais deixou de ser da família.

“Nasci nesta velha Cidade de Goiás no século passado e tenho comigo todas as idades”, costumava afirmar, orgulhosa.

O casarão branco de janelas retangulares, bordeados por madeira, resiste no tempo como a poesia de palavras incentivadoras de Cora. Mesmo após a enchente que afetou essa e outras construções da Cidade de Goiás, em 2001, a casa seguiu de pé, ainda que arquivo e estruturas tiveram que passar por restauros.

Entre 1911 e 1956, Anna Lins dos Guimarães Peixoto, seu nome de batismo, ficou fora de Goiás para morar no interior de São Paulo com Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas. Mal falada pela fuga planejada para morar com o marido advogado, Cora devolveu as críticas com o poema ‘Das Pedras’: “Ajuntei todas as pedras/Que vieram sobre mim/ Levantei uma escada muito alta/E no alto subi”.

“O leitor não encontra palavras negativas na sua obra. É uma poesia de força”, defende Marlene Velasco, antiga amiga de Cora e atual diretora do museu dedicado à poetisa.

Basta uma passada rápida pelo índice de muitas de suas obras para encontrar títulos como “Oração do Pequeno Delinquente”, “Oração do Presidiário” e “Mulher da Vida”, em homenagem às prostitutas.

Não é a toa que o pseudônimo Cora Coralina significava “coração vermelho”.

 

Cora foi embora da cidade, mas a cidade nunca deixou Cora.

Goiás Velho, como a cidade é conhecida, ainda guarda o visual cenográfico da época em que foi a primeira capital do estado e basta encostar na porta da casa de algum contemporâneo de Cora para gente ser recebido com uma sequência de histórias nostálgicas da época.

“A gente viu a ascensão daquela doceira que cantava versos. Mesmo depois de famosa, era possível vê-la pegando pau de lenha”, relembra Ana Maria Ribeiro, quem se orgulha de ter comprado muito açúcar para Cora fazer doce (mas sem deixar de confessar que roubava, ainda criança, alguns dos docinhos que a poetisa deixava na janela para secar).

Quando retornou para a cidade, em 1956, após a morte do marido, Cora preparava os famosos doces de figo verde, mamão e abóbora para engrossar a renda da casa. E na mesma mesa onde escorria a massa na peneira e mergulhava cada um em uma calda reduzida.

 

Cora contava com ajudantes para fazer os doces, mas era ela quem dava o ponto, na mesa bagunçada da cozinha, onde tinha sempre tinha dicionário e papéis à disposição, no caso de ter uma inspiração repentina.

E Cora quase sempre tinha.

“Seus doces eram um mosaico de cores em caixinhas embrulhadas em papel de presente e lacinho”, descreve Marlene Velasco, quem relembra que, em tempo difíceis, Cora também vendia livros. Uma passada rápida por sua biografia e a gente se convence de que não se tratam de definições nostálgicas de quem conviveu com a poetisa.

Cora Coralina aprendeu datilografia aos 70 anos; publicou seu primeiro livro, em 1965, quando já tinha 76 anos; criou o “Dia do Vizinho” (20 de agosto); e até problemas de saúde eram inspiração para poemas, como a ‘Ode às Muletas’ que escreveu, em 1973, após cair da escada e fraturar o fêmur.

 

“Apoio singelo e poderoso / de quem perdeu a integridade / de uma ossatura intacta, invicta em anos de andanças domésticas”.

E a gente sai daquela casa com a sensação de que ainda faltou história para ouvir, assim como quem vira a última página de um livro de Cora e fica com vontade de ler tudo outra vez.

Museu Casa de Cora Coralina
Rua Dom Cândido, 20, Cidade de Goiás (Goiás)